sábado, 27 de março de 2010

Século vinte e um, o tão esperado inferno universal. O fim do mundo e o começo da existência.
Era de aquário, a tão esperada mudança universal. O fim do mundo e o começo da existência.
Pra haver existência, é necessário o clímax da loucura, da tecnologia, da cegueira humana.
Somos o ninho de Nanãs Burukus, o começo de tudo, do homem, do bem, do mal e do caminho do meio.
Acordai-vos família, a subversão é a palavra de ordem nessa desordem escondida.
Selvageria humana, antropofagia desnecessária nas fábricas, indústrias e empresas.
-Mais um caiu! Caiu por seu irmão.
Ânsia cerebral, mudamos o lugar do coração e o colocamos no bolso.
-Perdi minha carteira, é coração roubado!
Encontrai-vos família. E eu sou o caminho da luz, posso te mostrar o pôr-do-sol, a lua cheia, as borboletas e as rosas, posso te mostrar quem tu és. Vai se assustar com o número de faces que te respresenta, pois você é a humanidade e a humanidade é você.
Mudai-vos carne humana, parem de fazer um grande coração chorar. Te imploro, te entorno, te mostro, te interno. Interno, enterro, empecilho.
Abra teus olhos e venha ver o sol nascer, venha ver a criança nascer, venha renascer e cresça mais bonito, mais indígo, mais índio!

RAÍSSA PERSIANI DE CAMPOS- MANIFESTO CONTRA A CEGUEIRA MODERNA

sábado, 20 de fevereiro de 2010

COSTUREIRAS

COSTURA

O olhar. Este era o ponto crucial. Tinha um olhar fatal, sincero e fortíssimo. Quando alguém cruzava com aqueles olhos não podia passar
imune. Sentiam-se hipnotizados. Qualquer um. Não houve ser humano capaz de resistir a esse olhar. Era de certa maneira simples. Um olhar de
maré mansa, mas escondia um tsunami e parece que todos sabiam disso. Não pela personalidade. Puro e simplesmente pelo o olhar. Crueldade
escancarada por trás da doçura desse olhar. parecia uma pessoa boa. Mas existia quem duvidasse. Alguns vizinhos diziam:
- Viu que pessoa zibída!
- Se vi minina, parece que tem um rei na barriga!
- Olha, eu num sei vocês, mas eu acho até, que num é ser humano!

É, por aí você já percebe de quem estamos falando. Mas no dia a dia não tinha nada de mal. Fazia seu trabalho pesado. Batia caixa na feira.
Tinha braços bem grandes e fortes, mas com um certa feminilidade. Estranho? É, eu também achei. Mas nada tão fora do normal. Saia as cinco, mas
as vezes passava do horário. Seis, seis e meia, até oito de vez em quando. Eram muitas caixas, que as vezes pareciam ter personalidade forte e apareciam
sem serem convidadas e fora do horário. Mas Jamais reclamava. Afinal, ganhava pra isso! Sem fazer cara feia batia todas as caixas, grandes, pequenas,
com personalidade, sem personalidade, todas! Não descriminava. Despedia-se dos amigos e ia embora. Tinha um que era especial. Malubim, esse era o nome dele.
Franzino, mas tinha uma força descomunal. Parece quanto mais sorria, mais força arranjava, sabe-se lá de onde, para bater as caixas. Tinham uma relação duvidosa.
Frequentavam muito a casa um do outro. No bairro que eles moravam (que curiosamente se chamava: " Vila da Nossa Senhora das Máquinas) todas as senhoras das janelas
e uma menina que ficavam costurando em suas máquinas comentavam:
- Você viu? Como eles estão juntos?
- Se vi! Que pouca vergonha!
- Pouca vergonha nada. Até é bunito de se vê!
- Bunito!? Bunito, sei... Você acha bunito ficá falada?
- Não foi isso que eu quis dizer...
- MAS É ISSO QUE É!
- Calma...
- CALMA NADA! VOCÊ NUM TÁ VENDO COMO NÓIS TAMO FALANO DELES? É ASSIM QUE VOCÊ QUER ACABAR? FALADA PELAS SENHORAS DE RESPEITO?
- Não, claro que não!
- Então, TENHA MODOS!
(silêncio)
- É que as vezes a vida passa tão rápido, que tenho vontade de fazer as coisas que nunca fiz... Só pra saber se dá tempo...
- O QUÊ!? OLHA SÓ O QUE CÊ TÁ DIZENDO!!!
- DIZINCHABIDA!!!
- Mas acho que vocês diviam pensá um pouco... Sabe, quanto tempo passô e a gente sempre aqui, costurando...
- E SEMPRE DIREITAS!!!
- ISSO MESMO!
- Costurando as vidas dos que passam na janela...
- SUA VULGAR!
- Como eu queria passar pela janela... Mesmo que alguém costurasse minha vida.
- SUA IMPURA!
- SUA VACA!!!
(SILÊNCIO. Todas se olham)
- disculpem... mas vocês tem que intender que ela tá tirando a gente do sério...
- É MESMO! JÁ PASSÔ DA HORA DE MUDAR DE CONVERSA!
- Eu só penso se somos mesmo felizes.
- CLARO QUE SOMOS! TEMOS NOSSOS MARIDOS, NOSSOS FILHOS...
- NOSSAS CASAS!
- TODAS AS QUINTAS A GENTE SE REÚNI PARA REZAR O TERÇO...
- GRAÇAS A DEUS!
- GRAÇAS A DEUS! (no céu ouve-se os anjos dizendo amém)
- O QUE MAIS PODEMOS QUERÊ!?
- Vivê, por exemplo...
- CHEGA! A GENTE NÃO PRECISA MAIS FICÁ OUVINDO ISSO!
- Como eu queria passÁ pela janela... E fico aqui, presa a essas linhas e panos...
- OLHA AGORA VOCÊ PASSOU DOS LIMITES!!!
(levanta-se) - Não, ainda não!
- SENTE-SE E TERMINE SEU TRABALHO!
( Corre desesperadamente e se atira pela janela)

Todas as costureiras ficam assustadas e correm para a janela. Veem o corpo lá em baixo estatelado na carroceria de um caminhão em meio a um monte de caixas. Como se fosse um eterno sorriso que acabará de ganhar a liberdade. As costureiras se olham. Se acalmam e sentam em frente as suas máquinas. Olham-se novamente. Até que uma delas resolve falar:
- Ninguém vai chamar a polícia?
( Silêncio)
- Acho que não...
(silêncio)
- Não tem ninguém na rua.
( Silêncio)
- É... Ainda são nove da manhã.
Um silêncio sepulcral. Todas se olham discretamente, uma por uma. Mordem os lábios desesperadamente. Outra torce um pedaço de pano. Até que uma não resisti mais!
- TAMBÉM! CÊ VIU QUE MININA MAIS BESTA!
- É MESMO! MAIS GENTE DA VIDA É ASSIM MESMO!
- É! TEM UMA VIDA BOA E FICA POR AÍ SE JOGANDO DA JANELA DOZOTRO!
- AI CREDO! SE MATÁ NÃO É DEUS!
- É MESMO!
- CÊS ACHAM QUE A GENTE DEVE REZÁ UM TERÇO PRA ELA?
- CLARO QUE NÃO! TÁ BESTA!?
- É! JÁ PENSOU REZÁ O TERÇO PRA UMA MININA DA VIDA!? DEUS CASTIGA NÓIS!
- É MESMO!
- A GENTE TEM É QUE LIMPÁ A JANELA.
- VAI QUE ELA ENCOSTÔ AÍ ANTES DE CAIR!
- É MESMO! EU VOU BUSCAR O DESINFETANTE!
Enquanto uma vai buscar o desinfetante uma começa:
- VOCÊ VIU QUEM TÁ JUNTO?
- QUEM?
- AQUELA CRIATURA QUE BATE CAIXA E O TAL DO MILUBIM!
- AH, VÊ LÁ SE ISSO É NOME DE GENTE!
- QUE POUCA VERGONHA!...
- QUE POUCA VERGONHA!...
- É MESMO! QUE POUCA VERGONHA!

(CONTINUA...)

*Em qualquer lugar do mundo.

FIM

OUTROLUIZ

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Fim de tarde

Não há nada mais para falar.
A novela já foi comentada.
Os reality shows já foram lembrados.
Os programas da tarde já foram falados.
O filme da noite já foi criticado.
Não há mais nada a ser dito.
Ela baixa seu olhar procurando um não sei o quê para se concentrar.
Ele estrala os dedos e dá um longo suspiro.
No sofá, há dois palmos de distância.
Não há conhecimento físico. Não há aprofundamento mental. Não há desprendimento espiritual.
Lá fora uma mãe passarinho leva comida para os filhos que acabaram de eclodir de seus ovos.
Uma lagartixa come uma barata.
Um menino passa no vestibular.
No vizinho, crianças correm atrás de uma bola.
Na esquina um casal se beija.
No bar, um grupo de amigos brinda ao dia.
Porque é sempre um dia. Não é apenas mais um dia.
No sofá é apenas mais um dia.
Vestígios de carne humana.
Restos de massa corporal.
Biologia típica, apenas sangue, suor e degradação.


RAISSA PERSIANI DE CAMPOS- MANIFESTO CONTRA A CEGUEIRA MODERNA

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Lamentação

A rua toda esburacada essa da minha casa. Há tanto tempo que eu não anda a pé por ela. Está com jeito de chuva e um ventinho muito gostoso de começo de noite. Senti-me livre. Buracos na rua. Pessoas humilde em casas também humildes. Eu deveria andar mais por aqui, pensei. Que riqueza mais humilde eu teria, que ruas simples essas por onde passo e nunca vejo. Mas em tempos passados eu via tudo isso, eu enxergava cada pedra perdida que eu chutava, cada menino que ficava no campo soltando pipa e jogando bola. Os meninos da rua, descalços, correndo, eu saindo com cara de nada de dentro de casa. O ponto de ônibus, a menina do ponto de ônibus que eu nunca mais vi (por onde ela anda?). A rua... tudo cinza, o céu alaranjado de quando eu saía à tarde para estudar, pegava ônibus, imaginava como seria a vida de cada pessoa que eu via nos bairros que o ônibus passava. Era tão bonicto. Eu via tudo, me alimentava disso, dessa vida, aspirava natureza que estava disponível todo tempo pra mim, pra todos. Que cegueira, meu deus. Que meus olhos se alarguem, não se contraiam, que alarguem muito, muito. Esse quarto escuro e abafado com o ventilador ligado, enquanto aqui escrevo na frente dessa tela estranha, me pareceu agora, nessa tela que é a única fonte de iluminação. eu cansada de alguma coisa muito além do físico. o ócio, talvez. mas e as palavras? a cadeira já com o formato da minha bunda, minhas mãos pedindo que se afastem, minhas costas pedindo massagem. eu queria correr agora, num campo imenso, imenso, onde veria minha silhueta no contra luz do por-do-sol nos pinheiros verdejantes. pinheiros que eu não visitei uma vez se quer nas minhas férias. e quando estava eu em São Paulo não parava de pensar neles, a saudade me matando dessa cidadezinha. que bosta, como eu sou burra. que porcaria tem importância? eu não tenho não. não valho nada. me senti carente de alguma coisa, talvez de mim mesma, talvez eu devesse me respeitar mais, me levar mais a sério, essa vida engraçada, essa vida lisa que escorre cada segundo, como agora por exemplo. não tenho uma tabacaria para olhar, mas garanto que se tivese eu não teria olhado. há algo em mim que me impediu de deixar meus olhos se alargarem, minha vida flui com um freio de mão um pouco puxado. os buracos na rua mostram quantas vezes passei de carro por ali, mas a pé, eu até poderia pisar nas poças que se formam nos buracos quando chove, e hoje choveu e eu poderia ter tomado chuva. eu poderia ter deitado no meio da rua, os braços esticados, as pedras fazendo doer minhas costas, um cachorro lambendo minha cara. mas não sei o que eu fiz. suspiro lamentando esse desleixo, essa cegueira repentina. que meus olhos absorvam, que continuem se alargando, igual diria Caio.

Cássia Oliveira- Manifesto contra a cegueira moderna

Pisem na Grama

Não deixe que teus pés em terra firme
te prendam à ignorância.
Não deixe que teus sapatos te apertem,
que tua gravata te sufoque
ou que se seus próprios cabelos pesem
a ponto de frear o pensamento.

Vamos todos ficar carecas!

Livres de amarras, laços e presilhas.
Vamos ser felizes com o ócio criativo
deitando onde quisermos-na grama!
Não hesite.A placa que sugere negação
basta ser arrancada. A grama agradece.
O corpo agradece.
A alma?
Só agradece.
Só engrandece.

RAFAELE BREVES– Manifesto contra a cegueira moderna

Enterro

Se a terra comer meus olhos
(esses que ela há de comer)
comeria ela também tudo que há nele?
tudo que nele contém?

a íris, a menina, o delírio
louco e molhado da terra encharcada
do verme em brasa
do cisto enclausurado

a beleza, o por-do-sol alaranjado
comeria, terra?
tudo que nele passou
tudo que pra ele passei
meus dias cinzentos
meus dias úmidos
secos e eternos
estaria, terra, contida depois em você?
a minha vida dos olhos
os olhares perdidos
as lágrimas que derramei
os amigos guardados
a chama ainda acesa
na lareira ardente
comeria, comeria?
meu passado cego
no passado moderno de cegueira?

mas eu olho e vejo
intacto
os olhos num vaso da vida
os olhos da vida num vaso

Cássia Oliveira - Manifesto contra a cegueira moderna

Berçário

Havia um gramado para me deitar
hesitei mesmo em pisá-lo
mas a tentação era tamanha
logo me vi sem sapatos
de gravata afrouxada
e braços abertos
existindo como cristo existiu
o cheiro me invadia

quanto tempo faz que não sinto isso
quanto tempo faz que não me sinto


quanto tempo faz que não sinto nada


com essas questões
o calor aumentou
tirei então todas as roupas

será que Adão se sentiu assim

deitei-me de novo
senti muita coceira nas costas
e olhei pra cidade
já longe dos meus limitados olhos

então percebi
que não havia lugar melhor
que aquele gramado
tão querido antes tão ignorado

eu ali deitado ainda
pude entender os mistérios
nunca antes decifrados
pois estar no gramado
era estar vivo
e viver

é apenas um estado...

OUTROLUIZ – Manifesto contra a cegueira moderna