sábado, 13 de fevereiro de 2010

Lamentação

A rua toda esburacada essa da minha casa. Há tanto tempo que eu não anda a pé por ela. Está com jeito de chuva e um ventinho muito gostoso de começo de noite. Senti-me livre. Buracos na rua. Pessoas humilde em casas também humildes. Eu deveria andar mais por aqui, pensei. Que riqueza mais humilde eu teria, que ruas simples essas por onde passo e nunca vejo. Mas em tempos passados eu via tudo isso, eu enxergava cada pedra perdida que eu chutava, cada menino que ficava no campo soltando pipa e jogando bola. Os meninos da rua, descalços, correndo, eu saindo com cara de nada de dentro de casa. O ponto de ônibus, a menina do ponto de ônibus que eu nunca mais vi (por onde ela anda?). A rua... tudo cinza, o céu alaranjado de quando eu saía à tarde para estudar, pegava ônibus, imaginava como seria a vida de cada pessoa que eu via nos bairros que o ônibus passava. Era tão bonicto. Eu via tudo, me alimentava disso, dessa vida, aspirava natureza que estava disponível todo tempo pra mim, pra todos. Que cegueira, meu deus. Que meus olhos se alarguem, não se contraiam, que alarguem muito, muito. Esse quarto escuro e abafado com o ventilador ligado, enquanto aqui escrevo na frente dessa tela estranha, me pareceu agora, nessa tela que é a única fonte de iluminação. eu cansada de alguma coisa muito além do físico. o ócio, talvez. mas e as palavras? a cadeira já com o formato da minha bunda, minhas mãos pedindo que se afastem, minhas costas pedindo massagem. eu queria correr agora, num campo imenso, imenso, onde veria minha silhueta no contra luz do por-do-sol nos pinheiros verdejantes. pinheiros que eu não visitei uma vez se quer nas minhas férias. e quando estava eu em São Paulo não parava de pensar neles, a saudade me matando dessa cidadezinha. que bosta, como eu sou burra. que porcaria tem importância? eu não tenho não. não valho nada. me senti carente de alguma coisa, talvez de mim mesma, talvez eu devesse me respeitar mais, me levar mais a sério, essa vida engraçada, essa vida lisa que escorre cada segundo, como agora por exemplo. não tenho uma tabacaria para olhar, mas garanto que se tivese eu não teria olhado. há algo em mim que me impediu de deixar meus olhos se alargarem, minha vida flui com um freio de mão um pouco puxado. os buracos na rua mostram quantas vezes passei de carro por ali, mas a pé, eu até poderia pisar nas poças que se formam nos buracos quando chove, e hoje choveu e eu poderia ter tomado chuva. eu poderia ter deitado no meio da rua, os braços esticados, as pedras fazendo doer minhas costas, um cachorro lambendo minha cara. mas não sei o que eu fiz. suspiro lamentando esse desleixo, essa cegueira repentina. que meus olhos absorvam, que continuem se alargando, igual diria Caio.

Cássia Oliveira- Manifesto contra a cegueira moderna

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