COSTURA
O olhar. Este era o ponto crucial. Tinha um olhar fatal, sincero e fortíssimo. Quando alguém cruzava com aqueles olhos não podia passar
imune. Sentiam-se hipnotizados. Qualquer um. Não houve ser humano capaz de resistir a esse olhar. Era de certa maneira simples. Um olhar de
maré mansa, mas escondia um tsunami e parece que todos sabiam disso. Não pela personalidade. Puro e simplesmente pelo o olhar. Crueldade
escancarada por trás da doçura desse olhar. parecia uma pessoa boa. Mas existia quem duvidasse. Alguns vizinhos diziam:
- Viu que pessoa zibída!
- Se vi minina, parece que tem um rei na barriga!
- Olha, eu num sei vocês, mas eu acho até, que num é ser humano!
É, por aí você já percebe de quem estamos falando. Mas no dia a dia não tinha nada de mal. Fazia seu trabalho pesado. Batia caixa na feira.
Tinha braços bem grandes e fortes, mas com um certa feminilidade. Estranho? É, eu também achei. Mas nada tão fora do normal. Saia as cinco, mas
as vezes passava do horário. Seis, seis e meia, até oito de vez em quando. Eram muitas caixas, que as vezes pareciam ter personalidade forte e apareciam
sem serem convidadas e fora do horário. Mas Jamais reclamava. Afinal, ganhava pra isso! Sem fazer cara feia batia todas as caixas, grandes, pequenas,
com personalidade, sem personalidade, todas! Não descriminava. Despedia-se dos amigos e ia embora. Tinha um que era especial. Malubim, esse era o nome dele.
Franzino, mas tinha uma força descomunal. Parece quanto mais sorria, mais força arranjava, sabe-se lá de onde, para bater as caixas. Tinham uma relação duvidosa.
Frequentavam muito a casa um do outro. No bairro que eles moravam (que curiosamente se chamava: " Vila da Nossa Senhora das Máquinas) todas as senhoras das janelas
e uma menina que ficavam costurando em suas máquinas comentavam:
- Você viu? Como eles estão juntos?
- Se vi! Que pouca vergonha!
- Pouca vergonha nada. Até é bunito de se vê!
- Bunito!? Bunito, sei... Você acha bunito ficá falada?
- Não foi isso que eu quis dizer...
- MAS É ISSO QUE É!
- Calma...
- CALMA NADA! VOCÊ NUM TÁ VENDO COMO NÓIS TAMO FALANO DELES? É ASSIM QUE VOCÊ QUER ACABAR? FALADA PELAS SENHORAS DE RESPEITO?
- Não, claro que não!
- Então, TENHA MODOS!
(silêncio)
- É que as vezes a vida passa tão rápido, que tenho vontade de fazer as coisas que nunca fiz... Só pra saber se dá tempo...
- O QUÊ!? OLHA SÓ O QUE CÊ TÁ DIZENDO!!!
- DIZINCHABIDA!!!
- Mas acho que vocês diviam pensá um pouco... Sabe, quanto tempo passô e a gente sempre aqui, costurando...
- E SEMPRE DIREITAS!!!
- ISSO MESMO!
- Costurando as vidas dos que passam na janela...
- SUA VULGAR!
- Como eu queria passar pela janela... Mesmo que alguém costurasse minha vida.
- SUA IMPURA!
- SUA VACA!!!
(SILÊNCIO. Todas se olham)
- disculpem... mas vocês tem que intender que ela tá tirando a gente do sério...
- É MESMO! JÁ PASSÔ DA HORA DE MUDAR DE CONVERSA!
- Eu só penso se somos mesmo felizes.
- CLARO QUE SOMOS! TEMOS NOSSOS MARIDOS, NOSSOS FILHOS...
- NOSSAS CASAS!
- TODAS AS QUINTAS A GENTE SE REÚNI PARA REZAR O TERÇO...
- GRAÇAS A DEUS!
- GRAÇAS A DEUS! (no céu ouve-se os anjos dizendo amém)
- O QUE MAIS PODEMOS QUERÊ!?
- Vivê, por exemplo...
- CHEGA! A GENTE NÃO PRECISA MAIS FICÁ OUVINDO ISSO!
- Como eu queria passÁ pela janela... E fico aqui, presa a essas linhas e panos...
- OLHA AGORA VOCÊ PASSOU DOS LIMITES!!!
(levanta-se) - Não, ainda não!
- SENTE-SE E TERMINE SEU TRABALHO!
( Corre desesperadamente e se atira pela janela)
Todas as costureiras ficam assustadas e correm para a janela. Veem o corpo lá em baixo estatelado na carroceria de um caminhão em meio a um monte de caixas. Como se fosse um eterno sorriso que acabará de ganhar a liberdade. As costureiras se olham. Se acalmam e sentam em frente as suas máquinas. Olham-se novamente. Até que uma delas resolve falar:
- Ninguém vai chamar a polícia?
( Silêncio)
- Acho que não...
(silêncio)
- Não tem ninguém na rua.
( Silêncio)
- É... Ainda são nove da manhã.
Um silêncio sepulcral. Todas se olham discretamente, uma por uma. Mordem os lábios desesperadamente. Outra torce um pedaço de pano. Até que uma não resisti mais!
- TAMBÉM! CÊ VIU QUE MININA MAIS BESTA!
- É MESMO! MAIS GENTE DA VIDA É ASSIM MESMO!
- É! TEM UMA VIDA BOA E FICA POR AÍ SE JOGANDO DA JANELA DOZOTRO!
- AI CREDO! SE MATÁ NÃO É DEUS!
- É MESMO!
- CÊS ACHAM QUE A GENTE DEVE REZÁ UM TERÇO PRA ELA?
- CLARO QUE NÃO! TÁ BESTA!?
- É! JÁ PENSOU REZÁ O TERÇO PRA UMA MININA DA VIDA!? DEUS CASTIGA NÓIS!
- É MESMO!
- A GENTE TEM É QUE LIMPÁ A JANELA.
- VAI QUE ELA ENCOSTÔ AÍ ANTES DE CAIR!
- É MESMO! EU VOU BUSCAR O DESINFETANTE!
Enquanto uma vai buscar o desinfetante uma começa:
- VOCÊ VIU QUEM TÁ JUNTO?
- QUEM?
- AQUELA CRIATURA QUE BATE CAIXA E O TAL DO MILUBIM!
- AH, VÊ LÁ SE ISSO É NOME DE GENTE!
- QUE POUCA VERGONHA!...
- QUE POUCA VERGONHA!...
- É MESMO! QUE POUCA VERGONHA!
(CONTINUA...)
*Em qualquer lugar do mundo.
FIM
OUTROLUIZ
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